Belas Maldições: As belas e precisas profecias de Agnes Nutter, bruxa

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Não importa se você gosta da DC ou da Marvel, se sente uma paixão platônica pelo humor da literatura britânica ou pela melancolia de Augusto dos Anjos, se não vive sem uma dose diária de cultura underground ou se nem mesmo sabe o que isso significa. Arrisco dizer que uma coisa é certa: se você está vivo e, no presente momento, residindo no mesmo planeta em que estamos todos nos esforçando tanto para destruir, é provável que o nome Sandman não lhe soe inteiramente estranho. Certo? Não? Ok, mas e quanto a Discworld? Nada? Nenhum lampejo? Putz! Façamos o seguinte: concedo-lhe alguns minutos para que se aventure um pouco pelas amigáveis terras da wikipédia para que, só então, voltemos à nossa resenha.

De volta? Gostou do que viu? Pois bem, permita-me que continue, sem mais delongas. E se os mestres Gaiman e Pratchett (criadores de Sandman e Discworld, respectivamente) se reunissem para tomar uma cervejinha gelada, criticar outros autores, debochar do cristianismo e, enquanto isso, iniciar a criação de uma obra conjunta relativa ao tema mais batido de toda a biografia do entretenimento – o apocalipse? Será que você, leitor, está igualmente encantado com as possibilidades de tal união? Estaria o delfonauta, bem como eu já estive, imaginando o surgimento de um Anticristo paranóico, por exemplo? Ou talvez um anjo sociopata? Quem sabe, uma freira golpista?

Estou falando aqui de Belas Maldições, o livro sobre o apocalipse dos gênios por trás das aclamadas séries Sandman e Discworld. Belas Maldições não é apenas o livro sobre o apocalipse mais incomum que você vai encontrar nas estantes de sua livraria preferida, mas também o menos apocalíptico, por assim dizer. Não me entenda mal, o prazo de validade do mundo dos mortais ainda está prestes a expirar, o filho do Pai-Das-Mentiras ainda há de surgir, as profecias, os anjos, os demônios, as conspirações, o juízo final… tudo ainda está presente como em um típico livro sobre o apocalipse – mas com a pitada especial da acidez, do sarcasmo, do estranho, da fantasia e do misto de ideologias que caracterizam o trabalho dos escritores.

Entenda dessa forma: pensar no apocalipse criado por Neil Gaiman e Terry Pratchett, seria como tentar imaginar uma versão de Alice e o País das Maravilhas sob o comando de Tim Burton. O que era bom, é brilhantemente aperfeiçoado, de forma que algo já explorado à exaustão torna-se uma experiência inteiramente nova e fascinante. E que experiência temos aqui.

O que o diferencia dos demais livros sobre o apocalipse é que, embora consistindo dos mesmos princípios e ferramentas, este é despretensioso, simplesmente não se leva a sério e é precisamente isso o que o torna tão grandioso. Tratando-se de um enredo tão distante do lugar comum como este, seria um pecado imperdoável de minha parte expor aqui qualquer traço relevante da história, então conduzirei esta análise com todo o cuidado possível para que nenhuma surpresa seja revelada antes do momento oportuno, por menor que seja.

É seguro dizer que, logo nas primeiras páginas, você vai se dar conta de que este é um livro diferente dos demais que abordam o mesmo tema. Caso já esteja familiarizado com os últimos trabalhos dos autores, irá encontrar traços evidentes de ambos, seja na construção dos personagens, que são tão cativantes quanto estranhos (como, talvez, seria um mago com fobia de doenças, ou, por que não, um cavaleiro do apocalipse no meio de uma crise existencial) como na elaboração do enredo – fragmentado em várias partes que se conectam continuamente, rumando sempre em uma mesma direção – ou no humor inteligente sempre presente, recheado de referências, cruel e satírico.

Certo, chega de especulações maldosas quanto aos personagens do enredo e vamos à coisa de verdade. A história inteira tem o seu ponto de partida nos primórdios da existência. Lembra da ingênua Eva? A mesma que condenou a humanidade a pagar por sua afronta ao Todo Poderoso? Pois é, ela não tem nada a ver com a trama, mas a serpente que a tentou sim!

Ela, a serpente, é na verdade Crowley, um demônio pra lá de simpático que, desde o princípio dos tempos, vê no anjo Aziraphale (dono da espada flamejante e responsável pelo pé na bunda do primeiro casalzinho do mundo) um sujeito irremediavelmente legal a quem ele não sente orgulho de chamar de amigo. E após um diálogo divertido e filosófico onde ambos, anjo e demônio, se questionam sobre a reação do Supremo quanto ao primeiro delito do homem (para Crowley, a punição foi um tanto quanto exagerada), o leitor é transportado para milhões de anos depois, a onze anos do Armagedom. E é daí que tudo se desenrola.

É concebido o filho do capeta, as forças do céu e do inferno se preparam e Crowley e Aziraphale, que concordam que a Terra é um lugar realmente bacana para se viver, decidem confrontar bem e mal, impedindo a guerra final e, com ela, o término do mundo que conhecemos. O problema é que o apocalipse está agendado para acontecer no ano em que a criatura mais poderosa do planeta, o anticristo, completaria seus onze anos de idade! E como se enfrentar um inimigo tão jovem já não fosse ruim o bastante, o moleque é simplesmente adorável!

Belas Maldições é uma deliciosa brincadeira em cima do apocalipse e do cristianismo em si. Não obstante, é também de uma sagacidade genuína, de um ritmo incansável, de uma narrativa veementemente excitante. É crítico, divertido e intenso. Enfim, são os senhores Gaiman e Pratchett em seus melhores. Se há um ponto negativo sobre a obra, é que acaba mais cedo do que você gostaria e dizer adeus a personagens tão ímpares como os de Belas Maldições não é uma tarefa de fácil aceitação. Compre aqui e depois diga se não concorda comigo.

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Nota
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Carlos Eduardo Corrales
Editor-chefe. Fundou o DELFOS em 2004 e habita mais frequentemente as seções de cinema, games e música. Trabalha com a palavra escrita e com fotografia. É o autor dos livros infantis "Pimpa e o Homem do Sono" e "O Shorts Que Queria Ser Chapéu", ambos disponíveis nas livrarias. Já teve seus artigos publicados em veículos como o Kotaku Brasil e a Mundo Estranho Games. Formado em jornalismo (PUC-SP) e publicidade (ESPM).
belas-maldicoes-as-belas-e-precisas-profecias-de-agnes-nutter-bruxaPaís: Reino Unido<br> Ano: 1990 (1999 no Brasil)<br> Autor: Neil Gaiman & Terry Pratchett<br> Editora: Bertrand<br> Preco: R$ 59,00<br>